Sou ouvinte de música erudita (ou clássica, termo mais comum, embora nem sempre exato) desde a adolescência, influenciado pelas partituras musicais para cinema de John Williams (Guerra nas Estrelas, Superman) e Jerry Goldsmith (Jornada nas Estrelas - O Filme), as quais eu cantarolava tão logo as ouvia, seja nos filmes, ou nos anúncios de TV destes mesmos filmes. Voltarei a estes princípios em breve.
Com o passar dos anos me interessei particularmente por dois compositores que, exceto Beethoven, eu mais escuto: Anton Bruckner (1824-1896) e Gustav Mahler (1860-1911). Sobre este último discorrerei neste espaço, falando um pouco da obra e de seus principais intérpretes.
A história da música é pródiga em episódios onde o reconhecimento só vem para um compositor após sua morte. Em alguns casos, bem depois. Podemos citar como exemplos Johann Sebastian Bach, Franz Schubert e Anton Bruckner, que, não por acaso, foi professor (embora não formalmente) de Mahler, objeto da presente reflexão.
Gustav Mahler nasceu na Boemia, em Kalist, uma aldeota hoje localizada em território húngaro. Era de família judia, situação que o levou a considerar a si mesmo três vezes apátrida: como boêmio na Áustria, como austríaco na Alemanha e, finalmente, como judeu no mundo.
Começou cedo os estudos musicais e ainda jovem regia óperas em teatros menores dentro do império austro-húngaro. Foi nomeado diretor da Ópera de Budapeste, transferindo-se pouco tempo depois para Hamburgo, para exercer o mesmo cargo. Neste ponto sua reputação como regente já estava em plena ascensão. Era exigente, perfeccionista, com explosões de intolerância quando contrariado por músicos ou cantores, os quais não hesitava em demitir sumariamente.
O cenário musical de sua época é de transição. O primeiro romantismo de Beethoven, Schubert e Schumann pertence ao passado enquanto os dramas musicais de Wagner e sua filosofia de “obra de arte total” consolidam-se na Alemanha e na França. Liszt está idoso, sendo venerado em toda a Europa. Berlioz falece sem ter sido reconhecido. Todos estes personagens têm uma influência decisiva nas concepções musicais de Mahler, quer na regência, quer na técnica composicional, aos quais Bruckner se somará.
Como compositor, escreveu na juventude alguma música de câmara, hoje de interesse apenas histórico. Quando descobriu o ciclo de poemas DES KNABEN WUNDERHORN (A cornucópia mágica do menino, em alemão) seu estilo começou a amadurecer. Musicou vários dos poemas, conseguindo simular as características da música popular germânica, ao ponto de suas composições serem confundidas com a autêntica música popular daquela cultura.
Suas sinfonias e canções são caracterizadas por grandes contrastes emocionais e estruturais, como em sua quinta sinfonia, que se inicia com uma marcha fúnebre desolada e se encerra com um finale de afirmação e júbilo.
Mahler é um dos compositores mais desafiadores do repertório, pois exige uma grande imaginação musical por parte dos maestros e orquestras. Nomes consagrados do meio musical, como o maestro alemão Wilhelm Furtwängler(1886-1954), considerado o maior regente do século XX, não se dispuseram a reger suas obras. Herbert Von Karajan(1908-1989),em muitos aspectos o sucessor de Furtwängler como maior maestro do mundo, só em seus últimos vinte anos regeu regularmente algumas das sinfonias e os ciclos de canções.
Nos dias de hoje execuções bem realizadas de suas obras são suficientes para alavancar a fama de qualquer regente ou orquestra, como é o caso de Sir Simon Rattle, britânico e atual diretor da Filarmônica de Berlim, que durante 18 anos foi titular da Sinfônica da Cidade de Birmingham, elevando-a ao topo das grandes orquestras mundiais, e do venezuelano Gustavo Dudamel, regente da Orquestra Jovem Simon Bolívar, da Venezuela, que, com menos de 30 anos se impõe como uma das maiores revelações da interpretação de música erudita, atualmente diretor da Filarmônica de Los Angeles e regente convidado de algumas das principais orquestras mundiais, como a já citada Filarmônica de Berlim.
Outros grandes nomes envolvidos com a interpretação mahleriana e que, de certa forma tiveram suas carreiras alicerçadas na obra do compositor austríaco foram Leonard Bernstein, Otto Klemperer, Bruno Walter, Jascha Horenstein, John Barbirolli, Rafael Kubelik, Bernard Haitink, Georg Solti, Zubin Mehta e Claudio Abbado, para citar alguns dos maestros mahlerianos que deixaram excelentes registros em disco.
Do ponto de vista do ouvinte, o grande atrativo está no imaginativo uso do aparato orquestral, com efeitos instrumentais que ainda fascinam por sua complexidade e pelos resultados alcançados quando bem executados, por exemplo, os compassos finais da segunda sinfonia, o scherzo da quinta sinfonia ou o finale da nona sinfonia. São trabalhos que entusiasmam os amantes da música sinfônica.
Inicialmente, as canções eram para voz com acompanhamento de piano. Algum tempo depois foram orquestradas e rearranjadas, com resultados bastante benéficos, assumindo as feições hoje difundidas.
Em 1889 estreou sua primeira sinfonia, então chamada Poema Sinfônico em Duas Partes, “Titã”, termo extraído da obra literária do escritor romântico Jean Paul, com cinco movimentos. Neste formato a obra não vingou e foi reorganizada, com a exclusão do segundo movimento, Floral (Blumine, em alemão), resultando em quatro movimentos, sendo então batizada de Sinfonia em Ré, editada sem o subtítulo, com o primeiro e o terceiro movimentos baseados em temas já usados em obras de canto anteriores, o segundo uma mistura de valsa com ländler, dança folclórica austríaca, e o último uma mistura de Bruckner com Richard Strauss, densamente orquestrado e com cerca de vinte minutos de duração. A propósito, Mahler não chegou a ser, formalmente, aluno de Bruckner, mas assistia a suas palestras e aulas, além de estudar suas sinfonias e missas.
A Primeira é a sinfonia mais acessível de Mahler. O primeiro movimento é schubertiano na simplicidade e beleza das melodias empregadas, aproveitando material já anteriormente desenvolvido no Ciclo de Canções Viagens de um Andarilho Errante, de clara inspiração folclórica, sendo desenvolvido sem pressa até quatro minutos antes do fim, quando a orquestra é usada em todo o seu potencial. Mais do que Dvorák, Mahler traz uma festa camponesa para a sala de concertos.
O segundo movimento, como já mencionado, também é em forma de dança, combinando a energia da valsa vienense com a melancolia do ländler, com resultados fascinantes.
A terceira frase é uma marcha fúnebre resignada e insistente combinada com uma melodia judaica, algo irônica, e a quarta soa como se um movimento sinfônico de Bruckner vestisse uma armadura orquestral de Richard Strauss. No último movimento Mahler segue o modelo de seu admirado mestre Bruckner ao citar e desenvolver os temas dos movimentos precedentes, inclusive o tema do BLUMINE, o movimento descartado para dar forma final à composição.
De início a Primeira Sinfonia não foi bem recebida, mas se impôs no decorrer dos anos, principalmente porque não apresenta as complexidades temáticas, estruturais e materiais de algumas das sinfonias posteriores. Pelo contrário. Muitos diretores de orquestras menos equipadas costumam manter em seu repertório pelo menos esta sinfonia.
Mas não devemos nos iludir. As sinfonias que Mahler entregou ao público são mais exigentes técnica e musicalmente do que qualquer obra anterior. É o apogeu da música austro-germânica, sendo o resultado lógico do desenvolvimento da música sinfônica iniciado um século antes por Joseph Haydn, continuado por Ludwig van Beethoven e Franz Schubert, seguindo até Anton Bruckner e concluindo sua trajetória com Gustav Mahler e seus discípulos mais jovens Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Von Webern, os quais estabeleceram alguns dos principais paradigmas da música erudita no século XX e sempre se referiam a Mahler como influência e inspiração. Um século após a morte de Mahler ainda não se constatou o aparecimento de um novo “titã” sinfônico da envergadura dos mestres acima mencionados, embora o finlandês Jean Sibelius e o soviético Dmitri Shostakovich tenham escritos grandes sinfonias.
Schubert fornece o modelo melódico de muitas obras de Mahler, embora este não seja um mero imitador. Ele tinha a capacidade de reunir diversos ingredientes musicais e empregá-los com resultados originalíssimos. Ele próprio considerava que cada novo estilo adotado exigia uma nova técnica que se adequasse. Por isso suas dez sinfonias, mais a Canção da Terra, destacam-se pela não repetitividade, de forma que nenhuma delas soa como as outras.
Bruckner é o modelo estrutural: frases imensas e longos desenvolvimentos são características de praticamente todas as sinfonias de Mahler.
A Primeira Sinfonia está fartamente disponível em disco ou download. Por ser a sinfonia mais acessível há muitas gravações competentes, de forma que não é fácil separar as melhores.
A crítica é bastante generosa com a versão de Rafael Kubelik à frente da Orquestra Sinfônica da Radiodifusão Bávara, sediada em Munique, na Alemanha. É considerada uma gravação clássica, realizada em pleno ressurgimento de Mahler como compositor, a partir do final dos anos 50 do século XX. O disco, editado pela Deutsche Grammophon, é complementado pelo ciclo CANÇÕES DE UM ANDARILHO ERRANTE, cantadas pelo barítono Dietrich Fischer-Dieskau.
Citamos também a gravação de Bernard Haitink, regendo a Orquestra Real do Concertgebouw de Amsterdã(Philips, 1971).Esta foi a primeira orquestra a abrir espaço regularmente em seus concertos para as obras de Mahler. Essa tradição perdura até hoje, em concertos e gravações memoráveis, independente de qual maestro esteja na regência, seja Haitink, Riccardo Chailly ou Mariss Jansons, o atual maestro titular. O virtuosismo orquestral resplandece em cada compasso, de forma que esta é uma versão eletrizante da primeira sinfonia, também complementada pelo mesmo ciclo presente na versão de Kubelik, agora na voz do barítono Hermann Prey.
Bastante consideradas são as realizações de Leonard Bernstein, tanto com a Filarmônica de Nova York (Sony Classical) como com a orquestra do Concertgebouw de Amsterdã (DG), esta última reputada como um marco da discografia mahleriana. Aqui Bernstein conseguiu um raro e extraordinário equilíbrio entre o conteúdo emocional e a excelência orquestral (característica também presente na sua gravação da Sinfonia Nº 5 com a Filarmônica de Viena). Talvez a melhor versão disponível.
Não por acaso, Bernstein foi assistente, e eventual substituto, de Bruno Walter, por sua vez discípulo e assistente de Mahler, responsável pelas estréias da Canção da Terra e da Nona Sinfonia, que nos legou preciosas gravações do repertório mahleriano, que nos dão uma idéia da abordagem de Mahler para suas próprias obras. Os discos são hoje editados pela Sony.
Destacamos, ainda, dentre outros, o trabalho de Claudio Abbado, com registros impecáveis desta sinfonia (e de todas as outras), com as Filarmônicas de Viena e de Berlim e a Sinfônica de Chicago. A propósito, este foi o programa de seu concerto inaugural como maestro titular da Filarmônica de Berlim, sucedendo ao falecido Herbert Von Karajan, em outubro de 1989.
As versões de Zubin Mehta e Georg Solti também são excelentes, principalmente as realizadas nos anos 70. Mehta e Rattle produziram versões que reincorporam o movimento descartado, o Blumine, embora muitos sustentem que o material não representa o melhor de Mahler, além de desrespeitar a decisão que o próprio compositor tomou sobre a forma final da primeira sinfonia. Defendemos a opinião de permitir ao público conhecer a obra em sua forma original e que cada ouvinte decida se o tal movimento é digno ou não de ser executado, principalmente pela integração temática realizada no último movimento, onde há várias citações do Blumine.
continua...
JHC